Conversa com um motorista de ônibus




Resolvi que como escritora deveria experimentar coisas novas, arriscar mais.
Saí de casa umas 5:00 da manhã, peguei o primeiro ônibus que passou e disse ao motorista que queria ir até o fim e ficar na última parada.
- Mas lá é perigoso, Dona.
Primeio que Dona fez com que eu me sentisse com uns 10 anos a mais e eu queria mesmo um pouco de perigo. A minha vida estava monótona demais.
- É lá mesmo que eu quero ficar.
O ônibus estava praticamente vazio, eu estava sentada perto do motorista, então ele decidiu matar um pouco a curiosidade.
- Olha, Dona, você não tem cara de que trabalha pra lá, ou tem algum conhecido que mora lá.
- Você está certo.
- Então por que a senhora que ir para um lugar que tantas pessoas evitam?
- Estou procurando um pouco de adrenalina hoje.
- Não seria mais fácil a senhora saltar de para-quedas?
É verdade, seria mil vezes mais fácil e eu não correria tanto risco de vida.
- É que eu tenho medo de altura.
- E não tem medo de morrer, não?
- Como assim?
- Olha, Dona, eu não gosta de fazer essa rota várias vezes ao dia. Quer dizer, tem algumas pessoas legais, honestas, mas lá é um bairro perigoso. Toda vez que chego perto já vou rezando e pensando como vai ser se resolverem entrar no ônibus, assaltar ou colocar fogo, sabe?
- Então por que o senhor faz isso todos os dias?
- Porque eu tenho mulher e dois filhos para criar. Já tentei muitas vezes mudar minha rota, mas como a senhora já deve ter percebido, não consegui.
Confessor que naquele momento comecei a pensar onde é que eu estava com a cabeça quando decidi levantar de madrugada, me arrumar e ir visitar o bairro mais perigoso da cidade. Se eu estava querendo morrer, era mais fácil eu ter ido saltar de para-queda sem para-queda.
- O senhor nunca procurou outro trabalho?
- Já, mas quem vai querer contratar um homem que mal sabe escrever o próprio nome?
- Como você se tornou motorista de ônibus?
- Olha, Dona, ser motorista de ônibus não é muito difícil. Ora, até mesmo um cara como eu sou. Pra ver, eu só tive que mostrar para eles que dirijo bem, sei compreender todas as placas e tenho coragem o suficiente para fazer essa mesma rota todos os dias. Não estou reclamando, não. Sabe, ser motorista de ônibus não é tão duro, sempre tem algum passageiro que nos trata com humanidade, são divertidos e interessantes. Mas nunca caimos na rotina, sabe?
- Sei... desculpe-me, qual é o seu nome?
- Rogério, Dona.
Eu não estava mais me importando com o Dona, talvez eu tivesse mesmo uns 10 anos a mais.
- Pois é, seu Rogério, acho que foi o cansaço da rotina que me fez acordar tão cedo, entrar aqui e desejar ir para esse lugar. Nessas horas, eu penso " Feliz mesmo é o motorista de ônibus."
- É, Dona, cair na rotina é pra matar, não? Pelo jeito, desculpa se eu tiver errado, mas a senhora tem maior cara de escritora.
- Como você sabe?
- Olha, o mundo tá cheio de vocês. Quase todos os dias entra um aqui. Tem os que fazem questão de parecer que são escritores, se duvidar até deixam alguns cartões com a gente, como se realmente fossemos ler algum de seus livros. Quer dizer, não é por nada não, mas a maioria aqui só quer saber é da novela mesmo e olhe lá. E tem aqueles que são super discretos, mas que sempre dão pinta de escritores ou uma tentativa disso. Depois de um tempo você aprende a identificar cada tipo de pessoa, sabe?. Se torna uma distração.
- E eu sou qual tipo de escritora?
- Do tipo louca.
Rimos juntos. Mas aquela brincadeira me tocou um pouco, fiquei pensando o que realmente ele quis dizer com isso.
- A senhora não me entregou nenhum cartão, em nenhum momento falou sobre a sua profissão e também nem me parece do tipo insegura. Além do mais, ainda teve a coragem de ficar escutando um motorista de ônibus que mal sabe escrever o próprio nome.
- E qual o problema com isso?
- Não é por nada, não. Mas vocês são bastante ligados a um português certo, toda aquela coisa de livro, palavras difíceis. Daí eu tiro a conclusão de porque de tantos escritores que passam por aqui, apenas você parou para conversar comigo.
Por um lado ele tinha razão, mas sabe, eu admiro bastante as pessoas. O Rogério era bastante inteligente, mesmo sem saber escrever direito, a vida já havia lhe ensinado bastante,e isso talvez nenhum livro pode nos oferecer com tanta clareza.
- Bom, Dona, chegamos no último ponto de ônibus. Cuidado, não vá encontrar adrenalina demais.
- Quer saber, conseguir sair da monotonia com essa conversa que tivemos. Aliás, eu tenho que explicar para você um pouco sobre essa coisa louca de ser escritor.
- Quer dizer que a senhora não vai ficar?
- Você ainda aguenta conversar com uma escritora?
- Sempre é bom uma boa companhia, ainda mais de alguém tão... como é que diz? acho que a palavra é intelectual.
- E só por curiosidade. Aonde o senhor mora?
- Ah, Dona, nesse bairro aqui, infelizmente. Mas aí é outra história.
- Então pode ir me contando que o caminho é longo.

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