Clarice



Algo estava consumindo Clarice. Depois de todo esse tempo, agora acorda frequentemente com uma vontade intensa de apenas ir, correr pelas ruas como aqueles panfletos que pegamos, ignoramos e simplesmente jogamos no ar para a sua própria sorte.

Olhou seu reflexo por horas e não se reconheceu. Os olhos cansados, as olheiras lembrando as noites mal dormidas, todas essas coisas que todo mundo passa, mas ninguém admite e insiste em julgar. Havia dormido mais de oito horas seguidas, o que era um recorde para alguém como ela, mas nunca havia acordado tão cansada, tão indisposta a fazer as mesmas coisas que a colocaram naquela posição. Pensou em escrever, mas não conseguiu. Pensou em muitas coisas, mas permaneceu na cama. Ligou a tv e não quis acreditar. Lá estava ela, sozinha, cansada, olhando para a tv, que a esmurrava com um programa sensacionalista qualquer.

Queria poder se dividir em várias e ir por aí como quem já está transbordando há tempos, em busca de si, até alcançar o estado de graça. Clarice havia, enfim, se tornado maior do que seus sonhos e agora estava se afogando em águas agitadas, mesmo sem saber nadar. Tornou-se pequena para si mesma, e grande demais para a cama que estava jogada.

Permaneceu assim por um tempo e depois ficou entre o levantar, abrir a porta, olhar para fora e voltar. Não sabia ao certo qual seria a sensação de passar por outras pessoas, sendo percebida ou não. Sentia-se pronta para o mundo, mas não sabia realmente se o resto do mundo estava pronta para ela. Sentia-se em uma espécie de corda, onde deveria se equilibrar sutilmente, até conseguir identificar o lado que deveria cair.

Voltou para o quarto. Sentou-se na cama e fechou os olhos. Esqueceu o embrulho no estômago, esqueceu os barulhos externos, esqueceu tudo que estava ao redor e concentrou-se em si mesma. Permaneceu por cerca de cinco minutos na mesma posição, em um estado de transe único, espiritual e cheio de simbologias que viriam a ser inspiração para sua escrita.

Resolveu que deveria sair, mas sempre havia algo sutilmente minusculo que a prendia. Nesse dia, nessa quarta, foi um pedaço de papel, com algum rascunho, que a impediu de sair de imediado. Ao invés disso, leu e releu várias vezes aqueles rabiscos trêmulos. Para a sua surpresa e felicidade literária, aquele papel também falava sobre quarta-feira.

"Quartas não são dias bons para ir, tarde demais para ir, o mar longe demais pra alcançar, ainda que ele também se estire em minha direção. E assim, algo tem me consumido. O que é mesmo que me prende aqui? Porque não deixo a porta escancarada e saio, deixando dentro todos os esquecimentos? Por que não lanço-me para cima como uma pilha de cartas sorteadas no programa da TV de domingo?"

Parou por um segundo, só decidindo que direção seguir, só se perguntando pra onde queria ir. Direita ou esquerda? Já fora do portão. E então lembrou-se que foi ali o lugar em que sempre quis estar. Foi para la que ela fugiu. Algo tem a estava consumindo. Não sabia o que se fazia da vida depois que se era feliz. Como um cão atônito ao ver o carro que perseguia simplesmente parar.

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